- “A única lei reconhecida pela fé é a do interesse naquilo em que ela vê como verdadeiro. Se o objetivo que ela persegue for absolutamente santo, ela não tem escrúpulo algum de invocar maus argumentos para sua tese, se os bons não forem convincentes. Se tal prova não é sólida, tantas outras o são!... Se tal prodígio não é real, tantos outros o foram” (Ernest Renan).
Na virada deste Natal, 2.012, reli a obra de
Eça de Queiroz, A Relíquia. Havia
lido o livro há mais dez anos e na época gostei muito, pois ele sempre foi uma
das minhas referências literárias na obra do imortal português. Mas, ao
relê-lo, foi melhor ainda. Descobri novas passagens, novas citações, novas
visões, novas descobertas, novas interpretações e, sobretudo, novas
compreensões de sua identidade e relação com os tempos em que vivemos. Tempos
em que procuramos suprir nossas incapacidades, fracassos e insucessos com essa
religiosidade exacerbada que se manifesta de modo exponencial na vida das
pessoas.
A história se passa em meados do
século 19 em Lisboa, Portugal. Tem como personagem principal, Teodorico Raposo,
o Raposão, órfão de pai e mãe que é criado por uma tia e madrinha beata, d. Patrocínio
das Neves. Esta, católica fervorosa, impõe uma formação católico-religiosa à
criança que, por sua vez, apresenta um caráter totalmente avesso à aceitação da
religião na sua vida. Não chega a ser ateu, mas debocha da crendice das pessoas
e da própria tia, em verdade do Portugal piegas e carola do século 19. Raposão,
além disso, alimenta uma ambição pela fortuna da tia que deseja herdar com sua
morte, ao mesmo tempo em que esconde esses desejos, aliados à sua compulsão por
mulheres e farras. Para herdar, no entanto, a fortuna da “titi” Patrocínio,
Raposão tem de se portar como um autêntico carola, temente a Deus e infenso às “relaxações”
(expressão usada por Eça, que naquele Portugal do século 19 tinha sinônimo de gandaia
envolvendo mulher), tão odiadas e condenadas pela madrinha.
Esse é o retrato preliminar que Eça
faz da sociedade portuguesa daquele ano de 1.887 quando o romance foi
publicado. Uma sociedade onde a religião, leia-se o catolicismo, tinha uma
presença forte numa boa parte do povo português, no contraponto de posturas
hipócritas que essas relações alimentam. Raposão, por assim dizer, encarna a
hipocrisia e o oportunismo que os charlatães da fé se utilizam nos dias de hoje
para enriquecer, e sua madrinha, a ingenuidade daqueles que têm na religião a
sua tábua de salvação, desde uma unha encravada até a garantia de leito do
reino de deus. Entre os dois, o charlatão e o crente - a onisciente e
onipresente igreja. Qualquer semelhança com o Brasil e os tempos atuais não
terá sido mera coincidência.
Umberto Eco disse, ao contrário do
que a maioria das pessoas pensa, que o fenômeno da religiosidade se acentua e se
manifesta com mais intensidade em tempos de desenvolvimento tecnológico. O
Brasil está aí para provar essa assertiva, quando se tem – em tempos de internet - um enxame de igrejas, seitas, credos e
crenças de todos os matizes se proliferando através, e sobretudo, da televisão,
que vocaliza e leva “a palavra de deus” até aos seus fiéis mais indiferentes,
num processo de massificação e sugestionamento. Nesse sentido, o Brasil de hoje
é, em certa medida, o Portugal de A
Relíquia: atrasado na educação, carente em saúde e segurança, precário em
infraestrutura, mas rico em religiosidade!
Assim, o romance se desenrola.
Raposão é mandado para Jerusalém para conhecer de perto a terra onde o menino
Jesus nasceu e na volta trazer algo para sua tia, uma “relíquia” da Terra Santa,
demonstrando, naquilo que sua hipocrisia melhor lhe poderia render, ser um falso
e empedernido crente perante sua tia, para render-lhe a tão cobiçada herança. A
viagem para a Terra Santa é entremeada por farras e compromissos religiosos.
Numa dessas farras, em Alexandria, a caminho de Jerusalém, depois de passar uma
noite com uma prostituta, Raposão ganha dela uma camisola, como lembrança dessa
falsa devoção amorosa que a messalina lhe atribui. Segue viagem com essa
camisola, mas na volta, temendo chegar em Lisboa com algo que macule sua
religiosidade e denuncie o cheiro da sua libertinagem, desfaz-se dela no
caminho. Em seu lugar, adquire na Terra Santa a relíquia da “titi”, uma coroa
de espinhos, os mesmos de uma árvore em que foram retirados para pôr na cabeça
de Cristo a caminho do calvário, para provar toda a sua religiosidade, sua
gratidão com a madrinha e assegurar a sua herança.
Chegando em Lisboa,
inexplicavelmente o embrulho com a relíquia veio trocado com a camisola da
prostituta e, ao entregá-lo à madrinha, se vê denunciado de suas infâmias e
falsidades, sendo escorraçado da sua casa e deserdado de sua almejada herança.
Na rua da amargura, no entanto, descobre o quanto o povo é crédulo com as
coisas de deus e passa a vender com sucesso as quinquilharias que trouxera da
Terra Santa: água do rio Jordão, pregos da arca de Noé, azeitonas do monte das
oliveiras, pedrinhas da Via Dolorosa, conchas do lago Genesaré, rosários,
bentinhos, medalhas, lascas da madeira da cruz onde Cristo foi crucificado e
toda sorte de bugiganga que esteja ao alcance da credulidade humana e do bolso
dos espertalhões da fé. Essa atitude é estimulada pelo trecho em que o amigo de
viagem à Terra Santa, o douto Topsius, lhe diz: “As relíquias, d. Raposo, não valem pela autenticidade que possuem, mas
pela fé que inspiram”. Quanto essas palavras têm dado margem a um sem-fim de
fraudes e vigarices em nome da fé religiosa!
O livro, além dessa crítica à Igreja
e ao comportamento sacro do povo português, traz no entanto, trechos de sublime
beleza historio-filosófico-religiosa, não se prestando tão somente a uma
censura barata à exploração da fé. Sabe-se que para escrever essa obra, Eça
estudou a Jerusalém do tempo de Cristo na biblioteca de Londres quando era
diplomata na Inglaterra nos idos da década de 80 dos anos 1.800. O romance
entremeia com a crítica mordaz própria do seu autor, uma bela descrição
histórica dos costumes, das leis, do comportamento do povo judeu; do clima, da
geografia, de modo detalhado e descritivo da Judéia daqueles tempos. Narra sob
o ponto de vista histórico e não religioso, o porquê Cristo, contra a vontade
dos romanos, foi levado à cruz como um insurreto da lei e ordem judaicas,
transferindo ao leitor fazer seu próprio juízo desse fato histórico desprovido
de influências e interferências sectárias.
Traz também a obra, ao contrário dos
que torcem o nariz ao ver em suas linhas uma mera crítica à Igreja e seu
rebanho, belas palavras que consagram a perpetuidade da fé cristã e, ao mesmo
tempo, criticam aqueles que a exploram com desonestidade em seu nome vantagens econômico-financeiras.
Em um trecho do livro isso é demonstrado por Eça, quando, após a derrocada de Raposão, num
diálogo com Jesus, este lhe diz que ele fingiu-se “devoto sendo incrédulo, caridoso sendo mesquinho” e simulou “a ternura de filho tendo só a rapacidade
de herdeiro... Tu foste ilimitadamente o hipócrita!”, diz Jesus a Raposão.
E, num discurso transcendental e sublime, que alcança não somente a fé em si
mesma, Jesus diz a Raposão: “Eu não sou
Jesus de Nazaré, nem outro Deus criado pelos homens... Sou anterior aos deuses
transitórios; eles dentro em mim nascem, dentro em mim duram; dentro em mim se
transformam, dentro em mim se dissolvem; e eternamente permaneço em torno deles
e superior a eles, concebendo-os e desfazendo-os, no perpétuo esforço de
realizar fora de mim o Deus Absoluto que em mim sinto. Chamo-me a Consciência;
sou neste instante a tua própria consciência refletida fora de ti, no ar, e na
luz, e tomando ante teus olhos a forma familiar, sob a qual, tu, mal-educado e
pouco filosófico, estás habituado a compreender-me... Mas basta que te ergas e
me fites, para que esta imagem resplandecente de todo se desvaneça”.
Que palavras mais belas poderiam ser
ditas num sentido que conjugue a fé e a racionalidade da ciência e a tão pregada
e pouco usada expressão dos cristãos, de que não devemos usar – como se usa - o
santo nome de deus em vão?
Mas, como A Relíquia traduz dentre outras coisas a mordacidade e ironia de
seu autor, a obra pontifica o cinismo dos exploradores da fé, dos raposões da
vida, quando, após ver-se desmascarado pela camisola da prostituta que pensava tratar-se
de uma coroa de espinho de Jesus, o seu personagem, Raposão, invectiva: “Sim! Quando em vez de uma coroa de martírio
aparecera, sobre o altar da titi, uma camisa de pecado, eu deveria ter gritado,
com segurança: ‘Eis aí a relíquia! Quis fazer a surpresa... não é a coroa de
espinhos. É melhor! É a camisa de Santa Maria Madalena!... Deu-ma ela no
deserto...’”.
O livro ainda faz rir. E muito.
Principalmente quando em certos trechos seus personagens se confundem com a
nossa classe política dos dias de hoje. Por exemplo, ao se dirigir para
Jerusalém levando toda a grandeza e ufanismo de Portugal e seu povo, Raposão,
depois de deparar-se com realidade dessa falsa convicção, não perde a pose e
diz a um inglês em tom de despeito e ridículo: “Eu sou Raposo, dos Raposos do Alentejo”. A frase molda-se
perfeitamente ao slogan patrioteiro, “brasileiro nunca desiste” e que tem se
convertido na pretensão de nossos presidentes ultimamente em dar lição de moral
ao mundo, quando, em missões internacionais, Lula se propõe intermediar, por
exemplo, a guerra entre judeus e árabes; e Dilma, dar aula e lição de economia
aos europeus. Coisas de país subdesenvolvido e com a boçalidade dos raposões.
Embora não seja crítico literário,
nem de longe, não poderia deixar de registrar esses comentários sobre essa
grande obra de Eça de Queiroz, numa época em que ela se identifica com nossos
tempos. Uma obra-prima
que, como seu autor, estava adiante de seu tempo.
Adorei estes comentários. Além de ter feito um bom resumo, demonstrou a sua opinião e alguns dos "momentos" de preferência. Também gostei bastante das comparações com ambas as sociedades portuguesas e brasileiras nos seus diferentes tempos.
ResponderExcluirEstou a ler o livro e isto deu bastante ajuda.
Obrigado!