“O
Deus transcendente, no imaginário católico, deixou de ser a potência ordenadora
do caos universal de que falam os primeiros católicos do Gênesis, para
adequar-se à medida do homem, fonte de verdade, bondade e justiça” (Eugenio
Scalfari)
Ultimamente temos assistido pela imprensa
notícias dando conta de iniciativa da prefeitura do Rio de Janeiro para
internar involuntária e compulsoriamente viciados em crack naquela cidade. À medida que num primeiro momento a ação
estatal possa levar à aprovação das pessoas que querem o bem de seus
semelhantes, ao mesmo tempo essa aprovação merece maior reflexão. Quem em sã
consciência pode concordar com espetáculo tão degradante quanto o de se ver
seres humanos consumindo drogas a céu aberto, sem qualquer perspectiva de vida
ou futuro? Essa é a armadilha para um juízo mais apressado.
A medida tomada pelo poder público
nesse caso tem mais o caráter estético-profilático-midiático - para não dizer
demagógico - do que propriamente o resgate da dignidade daquelas pessoas. O número de internações de viciados,
14, salvo engano, se não se afigura ridículo, evidencia a ineficácia da medida e a violência
do Estado em dar solução a problemas de modo pontual. Em outras palavras, o
poder público não quer resgatar pessoas, gente, seres humanos, mesmo porque ele
não diz o que será feito com essas pessoas depois da internação; quer, sim,
limpar a imagem estética de uma cidade que é cartão postal do mundo e que não pode
assistir a espetáculo de degradação moral que avilta uma mente civilizada. Já se
disse, ainda que de modo equivocado, as imagens chocam e falam por si.
Dito isto, vem a indagação: até que
ponto é dado ao Estado o direito de interferir na vida das pessoas a título de protegê-las,
impedindo que cometam aquilo que julga ser um mal ou que ajam em
desconformidade com os padrões de conduta impostos? Existe uma fronteira ética
e moral, intransponível, entre o direito de o Estado punir pela ação errada do
homem e a sua punição antecipada pelo impedimento de sua conduta. Essa questão não
envolve somente um aspecto de ordem jurídico-médico-legal, mas e, sobretudo, de
ordem ética e moral, pois interfere diretamente no livre arbítrio do ser
humano. Esse tema já foi – e tem sido - objeto de discussão
filosófico-religiosa entre dois personagens da Igreja Católica, Pelágio e Santo
Agostinho, com reflexos no pensamento ocidental até os dias de hoje. Foi trazido à luz de nossos tempos na imortal
obra de Anthony Burgess no seu romance Laranja Mecânica e levado ao cinema
pelas mãos de Stanley Kubrick.
Para quem não leu o livro ou viu o
filme Laranja Mecânica, eis aqui uma síntese do enredo desenvolvido pelo
escritor inglês na sua obra e que guarda uma correlação com a internação
involuntária dos viciados da Cracolândia carioca. Numa Londres situada em um
tempo em que as relações humanas vão se tornando mais e mais impessoais (a
escolha da cidade é meramente casuística, pois retrata a realidade da vida
moderna nas grandes metrópoles ao redor do mundo) e o desprezo pelos valores
éticos e morais acentuado, Burgess levanta um questionamento se o Estado tem
direito de intervir nas ações humanas para impedir que o homem cometa maldades
ou aquilo que é considerado mal. O personagem principal da obra é Alex,
adolescente que vive na periferia de Londres (um punk londrino ou o nosso punk
da periferia da música de Gilberto Gil), filho de pais operários pobres, e que
durante o dia leva uma vida ociosa e a noite age com sua gangue a cometer toda
sorte de crimes e violência. Alex, portanto, é o retrato da juventude excluída
das sociedades modernas que Burgess previu – e parece ter acertado boa parte de
sua premonição –: uma sociedade muita tecnológica, muito consumista, muito
materialista, muito desumana e desprovida de valores éticos e morais.
Preocupados com esse fenômeno socioeconômico,
os cientistas ingleses desenvolvem um invento que tem por finalidade reprimir a
conduta humana quando impulsionada a cometer crimes ou uma atitude que o Estado
considere aética ou imoral. O Estado desenvolve e lança mão da “Técnica
Ludovico”, uma referência à música de Ludwig Beethoven que será usada nos
experimentos em Alex. Alex, então, é preso e submetido como cobaia a uma
experiência do Estado no seu projeto de redimir a humanidade de seus erros,
crimes e pecados. E a lógica do Estado para seu projeto de redenção da
humanidade está estampada nas palavras do primeiro-ministro do governo que está
levando adiante a “Técnica Ludovico”: “O
governo não pode se preocupar com teorias penológicas datadas. Empilhe os
criminosos juntos e veja o que acontece: você obtém criminalidade concentrada,
crime no meio do castigo. Daqui a pouco vamos precisar de todo o espaço penitenciário
que temos para agressores políticos”.
O resultado das experiências
científicas feitas em Alex é, como diz Burgess no seu romance, retirar do
indivíduo qualquer direito enquanto homem a uma escolha moral. Toda vez que ele
quiser agir contra os ditames do Estado, Alex será contido por sensações de
náuseas e mal-estar físico. E, na advertência contra essa violência, a resposta
do Estado é eminentemente utilitarista: “Não
estamos preocupados com o motivo, com uma ética superior. Estamos preocupados
apenas em reduzir o crime”.
Burgess ainda que fosse um
agnóstico, estabelece uma negação a essa lógica na figura do capelão do
presídio onde se encontra Alex, quando aquele diz: “O que Deus quer? Será que Deus quer insensibilidade ou a escolha da
bondade? Será que um homem que escolhe o mal é talvez melhor do que o homem que
teve o bem imposto a si?”. Vitor Hugo faz o mesmo em Os Miseráveis, dando a Jean Valjean a proteção de um padre numa
França pouco sensível aos postulados da Igreja. Essas duas posições, assim, antagônicas, é que
vão estabelecer o enredo e o epílogo da obra de Burgess, transferindo para o
leitor a opção por uma delas, mas ficando claramente explícita a opção do
autor de Laranja Mecânica pela do capelão do presídio.
Ao defender seu ponto de vista de que
o Estado não pode interferir de modo artificial na vida das pessoas a fim de
corrigi-las, Burgess denuncia nessa atitude um comportamento totalitário, bem
ao sabor de regimes e governos que querem tutelar seres humanos ao alvedrio de
suas conveniências e interesses. Vê-se em sua posição uma questão
transcendental, de ordem moral e ética, que se sobrepõe aos simulacros estatais
na busca de conceber uma sociedade eugênica do ponto de vista comportamental. O
ponto central, portanto, da sua obra é o livre-arbítrio que envolve não somente
o aspecto de ordem moral, mas também de ordem religiosa. Numa entrevista dada a
propósito de sua obra nos anos 1970, Anthony Burgess reafirmou sua posição,
numa referência ao escritor russo Eugene Zamyatin, dissidente do stalinismo, dizendo que ”Adão não desejava ser feliz: ele
queria ser ‘livre’, desejava o livre-arbítrio, isto é o direito de poder optar
entre duas linhas de conduta, entre duas maneiras de agir sobre as quais
soubesse fazer um julgamento moral”.
Esse tem sido o grande dilema da
humanidade: até quando o homem pode agir à luz da sua vontade? Aí entra o
grande debate que se deu no âmbito da Igreja Católica entre Pelágio e Santo
Agostinho e tem reflexos éticos, morais e filosóficos até os dias de hoje.
Pelágio, defensor do livre-arbítrio, sustentava que o homem nascia livre de
toda e qualquer amarra, sendo liberto para fazer as suas opções nas ações que
iria tomar, um contraponto, portanto, na posição tomada pelo bispo de Hipona,
Santo Agostinho, que defendia que o homem nascia com o pecado original, devendo
assim rezar e pedir a Deus por sua salvação eterna.
A posição de Santo Agostinho,
oficializada pela Igreja, num primeiro momento é mais confortadora à alma
humana, pois parte da premissa que tendo o homem nascido com o pecado original não
seria completamente responsável por seus atos. A sutileza agostiniana na defesa
de sua tese, no entanto, não é que o homem não seja responsável por seus atos,
mas apenas que não é totalmente por eles responsável. É nessa parte da
responsabilidade do homem que Deus agiria oportunizando-lhe o arrependimento
por seus atos errados e lhe concederia o seu perdão. Em outras palavras, ao
homem não é dado pelos seus próprios atos abster-se do pecado, pois somente
com a graça divina ele pode tornar-se virtuoso. Essa posição, como dito, foi
sufragada pela Igreja, pois esta entende que o homem é um ser frágil neste
mundo de tormentas e tentações e, por isso, mesmo com a liberdade relativa de
agir que lhe foi conferida, quando ele errar, tem contar com a intervenção
divina na sua proteção.
Depois de uma longa batalha
filosófico-religiosa entre Santo Agostinho e Pelágio, prevaleceu a posição do
primeiro na França, no Concílio de Orange em 529 da nossa era. E embora Santo
Agostinho tenha imposto ao seu rival uma derrota de sua tese, a verdade é que o
pensamento de Pelágio perdurou em boa parte do pensamento filosófico e
religioso do ocidente, alcançando se não sua maior expressão na obra de Anthony
Burgess, ao menos uma expressividade que o torna passível de discussões e
interpretações.
Concluindo: em Laranja Mecânica Alex
depois do tratamento pela “Técnica Ludovico” tenta o suicídio, suicídio esse
testemunhado pelos que leram ou viram o filme. As tragédias da Cracolândia
carioca pós-internação involuntária não terão testemunhas, pois “a dor da gente
não sai no jornal”, como diz uma música de Chico Buarque. Ao homem,
pergunta-se, deve ser dada liberdade para agir e responder por suas consequências
ou optar por uma liberdade tutelada?
Nenhum comentário:
Postar um comentário