“Liberdade,
igualdade, fraternidade ou morte”
(Lema da Revolução Francesa após a derrubada da monarquia)
Antes de morrer na guilhotina na
Revolução Francesa, madame Roland disse uma frase que ficaria para a história e
marcaria as contradições em torno de uma coisa tão cara ao homem, a liberdade.
Disse ela antes de ser guilhotinada, quantos crimes estavam a se cometer em
nome da liberdade. Passados mais de dois séculos da Revolução Francesa, a
advertência de madame Roland permanece viva; mais do que isso, pois nunca a
palavra liberdade foi usada com tanta vulgaridade e aplicada com tanta
contradição como no Brasil. Liberdade política e econômica, neste país, em
grande parte das vezes, não passa de retórica na boca de demagogos e na pena
daqueles que efetivamente deveriam assegurar a sobrevivência daquilo que foi
fruto da luta de muitas gerações de homens que defenderam o direito de o homem
ser livre das tiranias.
Se começarmos pela liberdade
política, o número de presos em nossos presídios com mais de 500 mil
encarcerados, nos colocando como a quarta população carcerária do mundo, e mais
de 300 mil mandados de prisão por cumprir, dá a exata medida que há um
descompasso entre aquilo que a Constituição brasileira erigiu como presunção de
inocência e o direito de ser livre, de ter liberdade. O Brasil é um país, ao
que parece, que quer sair de seu subdesenvolvimento socioeconômico construindo
uma política de punição e mostrar ao mundo que aqui não há impunidade. Prender,
prender, prender! Essa é a cartilha da liberdade. Prender, no entanto, por paradoxal
que seja, na mente de certos reacionários que detêm uma parcela de poder, é
sinônimo de cidadania, de liberdade dos outros!
O Direito, antes uma ciência que
impunha respeito aos seus profissionais, chegou em um nível de banalização que
todo frequentador de botequim e apresentador de programas policiais de rádio e
televisão se arvora e se transforma em analista e crítico de certos eventos
criminosos de nosso cotidiano. Apontam o dedo, indicam o culpado, formulam a
pena e bradam o grito da impunidade. Por sua vez, o Judiciário, cedendo ao
apelo histérico de certos meios da mídia em determinados crimes de repercussão,
comete violação a muitos princípios de Direito e de justiça que envergonham o
mais mediano profissional dessa área, quando nega o direito à liberdade de
alguns acusados.
O caso da boate em Santa Maria/RS em
que até o prefeito daquela cidade foi indiciado e acusado de responsabilização
criminal pelas mortes lá ocorridas, denota bem como a liberdade está sendo
tratada neste país. Dolo eventual, expressão antes restrita a meios acadêmicos
e tribunais, é falada com autoridade na boca de muito boçal da nossa mídia, com
uma intimidade de fazer inveja ao mais erudito jurista. E o que dizer do
acidente no Rio de Janeiro ocorrido há poucos dias em que um ônibus caiu de um
viaduto matando quase dez pessoas? Esse caso seria cômico se não fosse absurdo.
O delegado do caso, sempre em nome da nossa liberdade, como dizem os espanhóis,
pediu a prisão preventiva do motorista do ônibus e do estudante que o agrediu.
Raciocínio do delegado para justificar a prisão preventiva: se o motorista
tivesse parado no local onde o estudante pediu, este não teria se aborrecido e,
não tendo se aborrecido, não teria agredido o motorista. Como o motorista não
parou, o estudante o agrediu; o agredindo, essa foi a causa do ônibus cair do
viaduto e matar as quase dez pessoas. Foi pedida a prisão preventiva do
motorista e do estudante por homicídio doloso eventual!
Custa crer como um mentecapto de um
delegado como esse passou num concurso da polícia civil, desprezando os mais
elementares princípios de Direito. Mas, mais assustador, é que não se viu nem
dos juristas de plantão, nem dos jornalistas “entendidos” em Direito, qualquer
crítica a tamanho disparate. Pela linha de raciocínio do delegado, se você sair
de casa, discutir e brigar com uma pessoa, por exemplo, vindo a cometer e
sofrer lesões corporais, isso ocorreu porque você saiu de casa; se você não
saísse de casa isso jamais teria acontecido e o crime não teria ocorrido. A
prevalecer tal entendimento, esticando o conceito do que chamamos em Direito de
concausa, o funcionário de uma fábrica de arma vai ser responsabilizado pelo crime
que venha ser cometido com ela, pelo simples fato de ter participado de sua
fabricação.
Este é o país que estamos vivendo. O
país onde diz ser uma democracia, mas em que se é obrigado a votar sob pena de
multa e uma série de outras penalidades; o país onde se cria agências
reguladoras sob o pretexto de defender o consumidor e as relações de consumo (em
verdade protegem os tubarões), mas onde em verdade elas interferem em tudo, no
uso da água, na aviação, na prescrição dos remédios, nos transportes terrestres,
no comércio, nas comunicações, enfim, em tudo. Diz-se ter liberdade econômica,
mas se convive com alguns monopólios legais, como a Petrobrás, que vende a
gasolina mais cara do mundo ao povo brasileiro ao mesmo tempo em que arrota ser
uma empresa moderna e lucrativa, quando os números de suas planilhas denunciam
outra coisa.
Este é o país onde se diz haver liberdade
de propriedade, mas onde o Estado não consegue assegurar esse direito, quando
transige e chega a ser conivente com as invasões de terras; onde as repartições
públicas Brasil afora são invadidas com a complacência do governo; onde
supostas minorias injustiçadas são patrocinadas pelo governo para invadir
recintos públicos e promover seus protestos; onde ministros da Suprema Corte e
de tribunais superiores são nomeados com o mais descarado compromisso com os
interesses do governo ou de alguns de seus membros (ou do partido que governa);
onde um ministro da Suprema Corte suspende a tramitação de uma lei no Congresso
(juridicamente sem qualquer eficácia prática) e este retalia anunciando que vai
alterar a Constituição para restringir os poderes do Tribunal; é o país em que
o ministro que dá essa decisão se reúne a portas fechadas com os presidentes
das duas Casas do Congresso e acertam as suas arestas “institucionais”, dizendo
que os Poderes se respeitam e se harmonizam, mas com a ausência do presidente
do Poder Judiciário.
Este é o país das crises inventadas
e artificiais entre poderes da República que não duram mais do que poucos dias
nas manchetes dos jornais.
Que país é esse?, perguntaria Renato
Russo. É o país em que vigora a ditadura da liberdade, onde liberdade tornou-se
uma abstração. Esse receituário se assemelha àquele que foi implantado na Revolução
francesa, quando após a derrubada da monarquia instaurou-se a República Una e
Indivisível Francesa, trazendo a reboque o lema revolucionário “Liberdade,
Igualdade e Fraternidade e Morte”. Isso mesmo, morte, como expressão da liberdade compulsória, imposta como
manifestação do Estado! Ficaram para a história as três primeiras expressões,
mas era assim que o Terror revolucionário levantava a bandeira da cidadania!
Não se pode conceber liberdade em
uma sociedade com tantas interferências do Estado no dia-a-dia das pessoas,
onde a igualdade tornou-se se não um projeto de poder, ao menos uma obsessão
inalcançável, onde a ideia de que a lei justifica todos os abusos é a que
prevalece. Friedrich Hayek, na sua obra O
caminho da servidão refuta esse raciocínio ao afirmar que “A ideia de que não há limites aos poderes
do legislador é, em parte, fruto da soberania popular e do governo democrático.
Ela tem sido fortalecida pela crença de que, enquanto todas as ações do Estado
forem autorizadas pela legislação, o Estado de Direito será preservado. Mas
isso equivale a interpretar de forma totalmente falsa o significado do Estado
de Direito. Não tem este relação alguma com a questão da legalidade, no sentido
jurídico de todas as ações do governo. Elas podem ser legais, sem no entanto se
conformarem com o Estado de Direito”.
Escrito na década de 40 essa obra,
na vigência do Terceiro Reich, Hayek demonstra a lógica de sua tese afirmando
que “É bem possível que Hitler tenha
adquirido poderes ilimitados de forma rigorosamente constitucional e que todas
as suas ações sejam, portanto, legais, no sentido jurídico. Mas quem
concluiria, por essa razão, que o Estado de Direito ainda prevalece na
Alemanha?”.
Assim , a pretexto de se aplicar a
lei e promover a igualdade e liberdade (só faltou a fraternidade), institui-se
neste país a ditadura da liberdade, aquela parecida com a república dos Estados
Unidos da Bruzundanga, de Lima Barreto, em que “Falavam em princípios republicanos e democráticos; enchiam a boca de
tiradas empoladas sobre a soberania do povo; mas não havia nenhum deles que não lançasse mão da fraude, da corrupção da
violência, para impedir que essa soberania se manifestasse”.
Parafraseando Levi Strauss, pobres trópicos.
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