quarta-feira, 1 de maio de 2013

A DITADURA DA LIBERDADE





“Liberdade, igualdade, fraternidade ou morte” (Lema da Revolução Francesa após a derrubada da monarquia)


            Antes de morrer na guilhotina na Revolução Francesa, madame Roland disse uma frase que ficaria para a história e marcaria as contradições em torno de uma coisa tão cara ao homem, a liberdade. Disse ela antes de ser guilhotinada, quantos crimes estavam a se cometer em nome da liberdade. Passados mais de dois séculos da Revolução Francesa, a advertência de madame Roland permanece viva; mais do que isso, pois nunca a palavra liberdade foi usada com tanta vulgaridade e aplicada com tanta contradição como no Brasil. Liberdade política e econômica, neste país, em grande parte das vezes, não passa de retórica na boca de demagogos e na pena daqueles que efetivamente deveriam assegurar a sobrevivência daquilo que foi fruto da luta de muitas gerações de homens que defenderam o direito de o homem ser livre das tiranias.

            Se começarmos pela liberdade política, o número de presos em nossos presídios com mais de 500 mil encarcerados, nos colocando como a quarta população carcerária do mundo, e mais de 300 mil mandados de prisão por cumprir, dá a exata medida que há um descompasso entre aquilo que a Constituição brasileira erigiu como presunção de inocência e o direito de ser livre, de ter liberdade. O Brasil é um país, ao que parece, que quer sair de seu subdesenvolvimento socioeconômico construindo uma política de punição e mostrar ao mundo que aqui não há impunidade. Prender, prender, prender! Essa é a cartilha da liberdade. Prender, no entanto, por paradoxal que seja, na mente de certos reacionários que detêm uma parcela de poder, é sinônimo de cidadania, de liberdade dos outros!

            O Direito, antes uma ciência que impunha respeito aos seus profissionais, chegou em um nível de banalização que todo frequentador de botequim e apresentador de programas policiais de rádio e televisão se arvora e se transforma em analista e crítico de certos eventos criminosos de nosso cotidiano. Apontam o dedo, indicam o culpado, formulam a pena e bradam o grito da impunidade. Por sua vez, o Judiciário, cedendo ao apelo histérico de certos meios da mídia em determinados crimes de repercussão, comete violação a muitos princípios de Direito e de justiça que envergonham o mais mediano profissional dessa área, quando nega o direito à liberdade de alguns acusados.

            O caso da boate em Santa Maria/RS em que até o prefeito daquela cidade foi indiciado e acusado de responsabilização criminal pelas mortes lá ocorridas, denota bem como a liberdade está sendo tratada neste país. Dolo eventual, expressão antes restrita a meios acadêmicos e tribunais, é falada com autoridade na boca de muito boçal da nossa mídia, com uma intimidade de fazer inveja ao mais erudito jurista. E o que dizer do acidente no Rio de Janeiro ocorrido há poucos dias em que um ônibus caiu de um viaduto matando quase dez pessoas? Esse caso seria cômico se não fosse absurdo. O delegado do caso, sempre em nome da nossa liberdade, como dizem os espanhóis, pediu a prisão preventiva do motorista do ônibus e do estudante que o agrediu. Raciocínio do delegado para justificar a prisão preventiva: se o motorista tivesse parado no local onde o estudante pediu, este não teria se aborrecido e, não tendo se aborrecido, não teria agredido o motorista. Como o motorista não parou, o estudante o agrediu; o agredindo, essa foi a causa do ônibus cair do viaduto e matar as quase dez pessoas. Foi pedida a prisão preventiva do motorista e do estudante por homicídio doloso eventual!

            Custa crer como um mentecapto de um delegado como esse passou num concurso da polícia civil, desprezando os mais elementares princípios de Direito. Mas, mais assustador, é que não se viu nem dos juristas de plantão, nem dos jornalistas “entendidos” em Direito, qualquer crítica a tamanho disparate. Pela linha de raciocínio do delegado, se você sair de casa, discutir e brigar com uma pessoa, por exemplo, vindo a cometer e sofrer lesões corporais, isso ocorreu porque você saiu de casa; se você não saísse de casa isso jamais teria acontecido e o crime não teria ocorrido. A prevalecer tal entendimento, esticando o conceito do que chamamos em Direito de concausa, o funcionário de uma fábrica de arma vai ser responsabilizado pelo crime que venha ser cometido com ela, pelo simples fato de ter participado de sua fabricação.

            Este é o país que estamos vivendo. O país onde diz ser uma democracia, mas em que se é obrigado a votar sob pena de multa e uma série de outras penalidades; o país onde se cria agências reguladoras sob o pretexto de defender o consumidor e as relações de consumo (em verdade protegem os tubarões), mas onde em verdade elas interferem em tudo, no uso da água, na aviação, na prescrição dos remédios, nos transportes terrestres, no comércio, nas comunicações, enfim, em tudo. Diz-se ter liberdade econômica, mas se convive com alguns monopólios legais, como a Petrobrás, que vende a gasolina mais cara do mundo ao povo brasileiro ao mesmo tempo em que arrota ser uma empresa moderna e lucrativa, quando os números de suas planilhas denunciam outra coisa.

            Este é o país onde se diz haver liberdade de propriedade, mas onde o Estado não consegue assegurar esse direito, quando transige e chega a ser conivente com as invasões de terras; onde as repartições públicas Brasil afora são invadidas com a complacência do governo; onde supostas minorias injustiçadas são patrocinadas pelo governo para invadir recintos públicos e promover seus protestos; onde ministros da Suprema Corte e de tribunais superiores são nomeados com o mais descarado compromisso com os interesses do governo ou de alguns de seus membros (ou do partido que governa); onde um ministro da Suprema Corte suspende a tramitação de uma lei no Congresso (juridicamente sem qualquer eficácia prática) e este retalia anunciando que vai alterar a Constituição para restringir os poderes do Tribunal; é o país em que o ministro que dá essa decisão se reúne a portas fechadas com os presidentes das duas Casas do Congresso e acertam as suas arestas “institucionais”, dizendo que os Poderes se respeitam e se harmonizam, mas com a ausência do presidente do Poder Judiciário.

            Este é o país das crises inventadas e artificiais entre poderes da República que não duram mais do que poucos dias nas manchetes dos jornais.

            Que país é esse?, perguntaria Renato Russo. É o país em que vigora a ditadura da liberdade, onde liberdade tornou-se uma abstração. Esse receituário se assemelha àquele que foi implantado na Revolução francesa, quando após a derrubada da monarquia instaurou-se a República Una e Indivisível Francesa, trazendo a reboque o lema revolucionário “Liberdade, Igualdade e Fraternidade e Morte”. Isso mesmo, morte, como expressão da liberdade compulsória, imposta como manifestação do Estado! Ficaram para a história as três primeiras expressões, mas era assim que o Terror revolucionário levantava a bandeira da cidadania!

            Não se pode conceber liberdade em uma sociedade com tantas interferências do Estado no dia-a-dia das pessoas, onde a igualdade tornou-se se não um projeto de poder, ao menos uma obsessão inalcançável, onde a ideia de que a lei justifica todos os abusos é a que prevalece. Friedrich Hayek, na sua obra O caminho da servidão refuta esse raciocínio ao afirmar que “A ideia de que não há limites aos poderes do legislador é, em parte, fruto da soberania popular e do governo democrático. Ela tem sido fortalecida pela crença de que, enquanto todas as ações do Estado forem autorizadas pela legislação, o Estado de Direito será preservado. Mas isso equivale a interpretar de forma totalmente falsa o significado do Estado de Direito. Não tem este relação alguma com a questão da legalidade, no sentido jurídico de todas as ações do governo. Elas podem ser legais, sem no entanto se conformarem com o Estado de Direito”.

            Escrito na década de 40 essa obra, na vigência do Terceiro Reich, Hayek demonstra a lógica de sua tese afirmando que “É bem possível que Hitler tenha adquirido poderes ilimitados de forma rigorosamente constitucional e que todas as suas ações sejam, portanto, legais, no sentido jurídico. Mas quem concluiria, por essa razão, que o Estado de Direito ainda prevalece na Alemanha?”.

            Assim , a pretexto de se aplicar a lei e promover a igualdade e liberdade (só faltou a fraternidade), institui-se neste país a ditadura da liberdade, aquela parecida com a república dos Estados Unidos da Bruzundanga, de Lima Barreto, em que “Falavam em princípios republicanos e democráticos; enchiam a boca de tiradas empoladas sobre a soberania do povo; mas não havia nenhum deles que  não lançasse mão da fraude, da corrupção da violência, para impedir que essa soberania se manifestasse”.

            Parafraseando  Levi Strauss, pobres trópicos.

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