domingo, 14 de abril de 2013

O SERVILISMO INTELECTUAL





“Pois é, meu caro, você é tão canalha quanto eu” (Frase de Hendrik Höfgen, em Mefisto).

“Se algum dia viveres num país em que um só partido governa e esse partido, vertical e dogmático, finda num cume onde se instala um único homem, um único Führer, coloca na sala de tua casa um retrato desse Führer, grande e ineludível” (Frase de Dieter Müller, em A sombra de Heidegger).



            Duas obras de escritores distantes temporal e geograficamente denunciam com uma crueza implacável, a que ponto os homens, para alcançar o poder ou estar bem com ele, se prestam, por oportunismo, ao servilismo intelectual, emprestando, vendendo ou alugando suas ideias e inteligências. A primeira delas, uma obra-prima, Mefisto, do alemão Klaus Mann, filho do prêmio Nobel de literatura, Thomas Mann; a outra, A sombra de Heidegger, do argentino José Pablo Feinmann. Mefisto foi escrito na década de 30 quando Klaus Mann exilou-se da Alemanha por não aceitar a dominação nacional-socialista que se impôs com Hitler; A sombra de Heidegger foi escrita no começo deste século. Ambas as obras tratam da relação – e adesão - dos intelectuais com o poder, em especial com a Alemanha nazista, mas que remete essa realidade a qualquer época, regime ou governo.

            Comecemos pela segunda, A sombra de Heidegger. Martin Heidegger foi um filósofo e intelectual que antecedeu, viveu e sucedeu o Terceiro Reich. Na obra de Feinmann – onde se misturam personagens fictícios e reais, há uma crítica acerba a Heidegger por ter ele aderido com suas ideias ao regime de Hitler. Mais do que isso, por ter aderido e mesmo sabendo das atrocidades dos nazistas posteriormente, nunca ter feito um juízo de retratação ou uma declaração de erro ou arrependimento. A obra narra a trajetória de Heidegger com os nazistas através do diálogo epistolar de um de seus discípulos com seu filho. Dieter Müller conta ao filho numa carta antes de matar-se como foi possível um homem do talento e grandeza intelectuais de Heidegger ter se prestado a conduzir toda uma geração de homens cultos à tragédia nacional-socialista que se abateria sobre a Alemanha, inclusive ele, seu aluno, adepto e admirador.

            Feinmann usa a missiva que Dieter Müller faz ao filho Martin – nome dado em homenagem ao próprio Heidegger – a crítica na qual aponta até onde pode chegar a ambição humana e suas relações promíscuas com o poder. Escandaliza-se como pôde ele, Heidegger, ter contribuído e se omitido com as atrocidades perpetradas pelos nazistas, com o apoio voluntário ou involuntário de toda a sociedade alemã que se não batia palmas para os horrores cometidos por Hitler e seus facínoras, fez-se indiferente ou anuiu de modo tácito a essas atrocidades. E aí é que A sombra de Heidegger mete o dedo na ferida sobre a responsabilidade dos intelectuais e os homens cultos com certos regimes e governos que desprezam aquilo que há de mais sagrado para eles: a liberdade de expressão e pensamento, a preservação de valores éticos e morais.

            Na carta que o pupilo de Heidegger dirige ao filho, coberto pela vergonha e a infâmia de ter se prestado a seguir pela senda de seu “Mestre” Heidegger, há toda uma denúncia de como certos intelectuais não só mancham e conspurcam seus princípios, como ainda conduzem toda uma legião de seguidores para certas tragédias como aquela que foi protagonizada pelo Terceiro Reich. E pode ser mais assustador ainda na lógica nietzscheniana defendida por Heidegger, quando em nome da grandeza ariana dos nazistas, ele indaga e afirma pela obra de Feinmann: “O que é o bem? Tudo que leva no homem o sentimento de poder, a vontade de poder, a potência em si”; “Que os fracos e os fracassados pereçam! Eis aí o primeiro princípio de nosso amor aos homens. E que sejam ajudados a morrer”.

Feinmann não termina a crítica a Heidegger pela carta de Dieter Müller ao filho; conclui com a visita do filho a Heidegger, anos depois na Alemanha, com aquele cobrando deste o porquê de sua conduta condenável e imoral para com toda uma geração de alemães, quando impassível ele assistiu de modo indiferente a perseguição e matança de judeus e minorias indesejáveis da cartilha de Alfred Rosemberg, Goebells, Himmler, Goering, todos eles arquitetos do Terceiro Reich. Martin Heidegger, como se sabe, morreu em 1.976 e conseguiu, ainda que sob certos questionamentos, levar para o túmulo a aura de luminar da filosofia. No diálogo travado entre o Martin, filho de Dieter Muller, e o Martin filósofo, o Heidegger, entretanto, Feinmann o põe a nu quando aquele questiona este afirmando que “a filosofia, o pensamento, é às vezes tão insuportável que mata”.

E, sugerindo pelo romance que Heidegger se suicidasse por provocação do filho de seu discípulo, tal como este fizera para se redimir das vergonhas cometidas em nome da razão, e diante de sua recusa, Feinmann fulmina a reputação do reitor de Freiburg ao acusá-lo com a citação de outro expoente da filosofia alemã, Jürgen Habermas: “o que irrita é a repressão da própria culpa”.

Mefisto, também, trata-se de uma crítica velada de Klaus Mann aos intelectuais que vendem sua alma para alcançar a glória – numa referência e similitude da obra de Goethe - mas um romance inspirado em fatos reais. Os fatos se passam na Alemanha hitlerista dos anos 30 e tem como personagem central o ator Hendrik Höfgen que, em verdade trata-se de seu ex cunhado Gustaf Gründgens, “ator oficial da camarilha nazista e amigo de Klaus Mann até a partida deste para o exílio, em 1.933”, segundo o prefácio de José Erlon Paschoal à obra editada pela editora Estação Liberdade.

Mefisto é uma obra sublime, pois retrata com uma realidade impressionante como os homens vendem suas almas para alcançar a fama e o poder (embora no Brasil alguns de nossos homens públicos apenas a aluguem!). E em Höfgen, como ator, esse servilismo e oportunismo aos olhos de Klaus Mann parecem acentuados, quando ele afirma em certo trecho do romance que seu ex cunhado “mente sempre e não mente nunca. Sua falsidade é a sua autenticidade... Soa complicado, mas é bastante simples. Ele  acredita em tudo e não acredita em nada. É um ator” (a definição não se encaixa perfeitamente na nossa classe política brasileira?).

 Assim, como acontece em todas as revoluções e movimentos revolucionários, aqueles que não creem na sua ocorrência são os primeiros a aderi-los quando eles acontecem. Hendrik Höfgen, como dito, existiu na pessoa do cunhado de Mann e antes que os nazistas chegassem ao poder em 1.933, eram por ele objeto de troça e deboche. Höfgen, o ator comprometido com um Teatro Revolucionário e a causa do proletariado, no entanto, muda radicalmente quando Hitler chega ao poder e passa a ser um dos ícones do novo teatro nazista (qualquer semelhança com o Brasil de hoje terá sido mera coincidência?). A adesão do cunhado ao nazismo e o inconformismo ao ambiente hipócrita e oportunista em relação  aos novos donos  do poder na Alemanha dos anos 30, leva Klaus Mann a deixar o país.

Klaus Mann ao exilar-se da Alemanha e escrever sua obra em 1.936, serviu no exército norte-americano, lutando na Itália e norte da África. Com o fim do regime nazista, sua obra que se viu proibida de publicação na Alemanha nesse período, não pôde, todavia, ser publicada na Alemanha democratizada, chegando alguns historiadores a defender a tese de que ele teria se suicidado em 1.949 em razão desse fato. Recusada inicialmente por editoras de publicar sua obra – mesmo com o fim do nazismo - e depois por decisão da justiça alemã ocidental, no entanto, pela repercussão de suas denúncias passou a ser publicada em vários países.

Logo, o que choca em Mefisto não é tão somente a denúncia da submissão e ignomínia dos intelectuais aos novos mandatários do poder (que antes eles criticavam), mas, o fato de como foi possível a obra ter sido recusada à publicação mesmo com o fim do nazismo por editoras alemãs e posteriormente pela justiça daquele país, numa negação a toda uma tradição de um povo que cultuava a liberdade de expressão e pensamento. A batalha judicial que negou a Klaus Mann o direito de publicar a sua obra em seu próprio país se arrastou por vários anos, só vindo a ser liberada nos anos 80 na Alemanha (A obra foi publicada em 1.956 na Alemanha, mas foi suspensa pela justiça alemã por intervenção do filho de Gustaf Grüdgens).

É claro que essa recusa não obteve uma quase-unanimidade do povo alemão como ocorrera com o regime  nazista, não só no plano jurídico, como no plano literário. Um jurista de então, Fritz Bauer, ao comentar a negativa da justiça alemã em autorizar a publicação de Mefisto – por ação da família de Grüdgens que impedia nos Tribunais a publicação da obra - disse em 1.966: “A liberdade de imprensa, no caso de direito da pessoa não pode ser limitada pela exigência de um homem em ver fixada uma determinada imagem sua. Cada um de nós, portanto, oscila nessa história”, pois “não temos o direito à própria imagem quando se trata de uma pessoa contemporânea; todos os contemporâneos, seja hoje ou em épocas passadas, têm de aceitar ser considerados e avaliados com os olhos subjetivos”.

Como acontece com seu homônimo de Goethe, Hendrik Höfgen se enrodilha nas brumas do poder, quando Mann afirma em Mefisto que ele perdera toda a vergonha e pudor, pois “o sucesso, esta sublime e irrefutável justificativa de todas as infâmias” é o desejo de todo homem. Em Mefisto, Klaus Mann mostra como em nome da ambição desmedida pela fama e poder certos intelectuais renegam seus princípios, negam seus amigos, aderem seus inimigos e pactuam em nome desse compromisso sua alma com o Diabo, quando Hendrik Höfgen ouve de um ministro do Terceiro Reich, com o cinismo que lhe é próprio, que: “Não há dentro de todo alemão algo de Mefistófeles, algo de gozador e de malvado? Se não tivéssemos nada além de uma alma faustiana... o que seria de nós?”.

Como se vê, não somente os ignaros e a plebe rude são conduzidos pelo cajado do poder, a intelligentsia o faz, muitas vezes, como um cordeiro obediente e com as mesmas convicções.

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