segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

ESTÁ FALTANDO RACIONALIDADE




“Eu tenho pena desses dois rapazes” (Declaração da viúva do cinegrafista da TV Bandeirantes - morto nas manifestações do Rio sobre o aumento das passagens de ônibus - sobre os dois jovens acusados de matarem seu marido).

A imprensa brasileira vem dando uma ênfase acentuada à morte do cinegrafista da TV Bandeirantes, Santiago Andrade, atingido por um rojão no Rio de Janeiro no protesto sobre o aumento das passagens de ônibus determinado pelo prefeito da capital carioca há duas semanas. Os acusados, dois rapazes de pouco mais de 20 anos, disseram que não tinham intenção de matar, mas isso não tem servido para dissuadir a mídia para dizer que foi um atentado à liberdade de imprensa. Menos. Confesso que nunca vi um coro tão grande contra a punição de duas pessoas, dois jovens que, sem exagero, pode-se chamar de párias dessa nossa sociedade injusta e desigual.

            E, ainda que a mídia reverbere um protesto voraz contra esses dois rapazes - vítimas desse sistema injusto e de um governo ou governos que até pouco menos de um ano diziam atendê-los, voltando atrás no aumento da passagem de ônibus – foi da viúva da vítima, a esposa do cinegrafista morto que se ouviu uma declaração de lucidez e racionalidade: “eu tenho pena desses dois rapazes”. Essa declaração revela que mesmo tendo havido uma morte que deve ser esclarecida e seus responsáveis julgados à luz da lei e não da histeria coletiva, não pode desviar o foco do problema central que levou aquelas pessoas às ruas do Rio de Janeiro protestar contra o aumento das passagens de ônibus: o descaso das autoridades públicas brasileiras com seu povo.

            Mas a imprensa brasileira deu outro viés à morte do cinegrafista, fazendo mais uma campanha de corporativismo pela morte do colega do que – o que seria correto – mostrar que os governos brasileiros em todos os seus níveis ainda estão – e muito – em débito com seu povo. Em todo movimento de rua, não se pode negar, haverá sempre aproveitadores, arruaceiros e baderneiros de todos os matizes e, por trás deles, oportunistas para tirar vantagem da situação. Isso não tem, entretanto, a força para retirar das ruas o descontentamento real e presente do povo brasileiro com o desleixo com que ele é tratado por seus governantes a ponto de levá-lo a reações extremadas como a que temos visto ultimamente nos incêndios de ônibus no Rio e em São Paulo.

            E a história, com o diz Marx, sempre se repete como uma farsa. Lima Barreto dá prova disso, pois em 1.905 (há mais de 100 anos!) descreve cena em seu livro Recordações do escrivão Isaías Caminha, ocorrida há mais de um século que, se não soubéssemos que se trata de uma obra do começo do século 20 (Lima Barreto faz referência a revolta contra a vacina obrigatória), acharíamos que ele estava a cobrir os eventos da semana retrasada no Rio de Janeiro. Diz ele:

“Durante três dias a agitação manteve-se. Iluminação quase não havia. Na rua do Ouvidor armavam-se barricadas, cobria-se o pavimento de rolhas para impedir as cargas de cavalaria. As forças eram recebidas a bala e respondiam. Plínio de Andrade, com quem há muito não me encontrava, veio a morrer num desses combates. Da sacada do jornal, eu pude ver os amotinados.  Havia a poeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o desordeiro profissional, o pequeno-burguês, empregado, caixeiro e estudante; havia emissários de políticos descontentes. Todos se misturavam, afrontavam as balas, unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam o seu inimigo natural e outros o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e a abundância.
O motim não tem fisionomia, não tem forma, é improvisado. Propaga-se, espalha-se, mas não se liga. O grupo que opera aqui não tem ligação alguma com o que tiroteia acolá. São independentes; não há um chefe geral nem um plano estabelecido. Numa esquina, numa travessa, forma-se um grupo, seis, dez, vinte pessoas diferentes, de profissão, inteligência e moralidade. Começa-se a discutir, ataca-se o governo; passa o bonde e alguém lembra: ‘Vamos queimá-lo’. Os outros não refletem, nada objetam e correm a incendiar o bonde.
O apagamento momentâneo da honestidade e a revolta contra pessoas inacessíveis levam os melhores a esses atentados brutais contra a propriedade particular e pública. Concorre muito a nossa perversidade natural, o nosso desejo de destruir que, adormecido no fundo de nós mesmos, surge nesses momentos, quando a lei foi esquecida e a opinião não nos vigia”.

            Eis a essência do descontentamento popular – de ontem e hoje - tão bem descrito por Lima Barreto: “ódio à polícia, onde uns viam o seu inimigo natural e outros o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e a abundância” e “a revolta contra pessoas inacessíveis levam os melhores a esses atentados brutais...”. Nada mais atual.  Após a morte do cinegrafista e o coro uníssono da imprensa por justiça contra os dois rapazes indiciados por sua morte, o governo ainda surdo ao clamor da sociedade responde com seu velho instrumento autoritário e repressivo, uma lei que pune certos atos de manifestação pública com até 30 anos de prisão! A viúva do cinegrafista foi a única voz lúcida que ouvi: “eu tenho pena desses dois rapazes”.

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