“Eu tenho pena desses dois rapazes” (Declaração
da viúva do cinegrafista da TV Bandeirantes - morto nas manifestações do Rio
sobre o aumento das passagens de ônibus - sobre os dois jovens acusados de
matarem seu marido).
A imprensa brasileira vem dando uma
ênfase acentuada à morte do cinegrafista da TV Bandeirantes, Santiago Andrade,
atingido por um rojão no Rio de Janeiro no protesto sobre o aumento das
passagens de ônibus determinado pelo prefeito da capital carioca há duas
semanas. Os acusados, dois rapazes de pouco mais de 20 anos, disseram que não
tinham intenção de matar, mas isso não tem servido para dissuadir a mídia para
dizer que foi um atentado à liberdade de imprensa. Menos. Confesso que nunca vi
um coro tão grande contra a punição de duas pessoas, dois jovens que, sem
exagero, pode-se chamar de párias dessa nossa sociedade injusta e desigual.
E, ainda que a mídia reverbere um
protesto voraz contra esses dois rapazes - vítimas desse sistema injusto e de
um governo ou governos que até pouco menos de um ano diziam atendê-los,
voltando atrás no aumento da passagem de ônibus – foi da viúva da vítima, a
esposa do cinegrafista morto que se ouviu uma declaração de lucidez e
racionalidade: “eu tenho pena desses dois rapazes”. Essa declaração revela que
mesmo tendo havido uma morte que deve ser esclarecida e seus responsáveis
julgados à luz da lei e não da histeria coletiva, não pode desviar o foco do
problema central que levou aquelas pessoas às ruas do Rio de Janeiro protestar
contra o aumento das passagens de ônibus: o descaso das autoridades públicas
brasileiras com seu povo.
Mas a imprensa brasileira deu outro
viés à morte do cinegrafista, fazendo mais uma campanha de corporativismo pela
morte do colega do que – o que seria correto – mostrar que os governos
brasileiros em todos os seus níveis ainda estão – e muito – em débito com seu
povo. Em todo movimento de rua, não se pode negar, haverá sempre
aproveitadores, arruaceiros e baderneiros de todos os matizes e, por trás
deles, oportunistas para tirar vantagem da situação. Isso não tem, entretanto,
a força para retirar das ruas o descontentamento real e presente do povo
brasileiro com o desleixo com que ele é tratado por seus governantes a ponto de
levá-lo a reações extremadas como a que temos visto ultimamente nos incêndios
de ônibus no Rio e em São Paulo.
E a história, com o diz Marx, sempre
se repete como uma farsa. Lima Barreto dá prova disso, pois em 1.905 (há mais
de 100 anos!) descreve cena em seu livro Recordações
do escrivão Isaías Caminha, ocorrida há mais de um século que, se não soubéssemos
que se trata de uma obra do começo do século 20 (Lima Barreto faz referência a
revolta contra a vacina obrigatória), acharíamos que ele estava a cobrir os
eventos da semana retrasada no Rio de Janeiro. Diz ele:
“Durante três dias a agitação
manteve-se. Iluminação quase não havia. Na rua do Ouvidor armavam-se
barricadas, cobria-se o pavimento de rolhas para impedir as cargas de
cavalaria. As forças eram recebidas a bala e respondiam. Plínio de Andrade, com
quem há muito não me encontrava, veio a morrer num desses combates. Da sacada
do jornal, eu pude ver os amotinados.
Havia a poeira de garotos e moleques; havia o vagabundo, o desordeiro
profissional, o pequeno-burguês, empregado, caixeiro e estudante; havia
emissários de políticos descontentes. Todos se misturavam, afrontavam as balas,
unidos pela mesma irritação e pelo mesmo ódio à polícia, onde uns viam o seu
inimigo natural e outros o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e a
abundância.
O motim não tem fisionomia, não tem
forma, é improvisado. Propaga-se, espalha-se, mas não se liga. O grupo que
opera aqui não tem ligação alguma com o que tiroteia acolá. São independentes;
não há um chefe geral nem um plano estabelecido. Numa esquina, numa travessa,
forma-se um grupo, seis, dez, vinte pessoas diferentes, de profissão,
inteligência e moralidade. Começa-se a discutir, ataca-se o governo; passa o
bonde e alguém lembra: ‘Vamos queimá-lo’. Os outros não refletem, nada objetam
e correm a incendiar o bonde.
O apagamento momentâneo da
honestidade e a revolta contra pessoas inacessíveis levam os melhores a esses
atentados brutais contra a propriedade particular e pública. Concorre muito a
nossa perversidade natural, o nosso desejo de destruir que, adormecido no fundo
de nós mesmos, surge nesses momentos, quando a lei foi esquecida e a opinião
não nos vigia”.
Eis a essência do descontentamento
popular – de ontem e hoje - tão bem descrito por Lima Barreto: “ódio à polícia, onde uns viam o seu inimigo
natural e outros o Estado, que não dava a felicidade, a riqueza e a abundância”
e “a revolta contra pessoas inacessíveis
levam os melhores a esses atentados brutais...”. Nada mais atual. Após a morte do cinegrafista e o coro uníssono
da imprensa por justiça contra os dois rapazes indiciados por sua morte, o
governo ainda surdo ao clamor da sociedade responde com seu velho instrumento
autoritário e repressivo, uma lei que pune certos atos de manifestação pública
com até 30 anos de prisão! A viúva do cinegrafista foi a única voz lúcida que
ouvi: “eu tenho pena desses dois rapazes”.