“A fraude é o único caminho possível
para a verdade”
(Jean-Claude Carrière)
“O que é a verdade?” (Pergunta de Pilatos a Jesus Cristo)
Neste fim e começo de ano fui a
Europa em férias. Retornei a Paris e conheci Berlim. Em Paris, seguindo a
sugestão de Ruy Castro e Heloísa Seixas em seu livro Terra, mar e ar, saí do roteiro convencional da cidade e fui
conhecer pontos e locais que fizeram história, sobretudo, da Revolução
Francesa. Na rua Saint-Honoré, 400, conheci o local onde foi a casa em que
morou Robespierre, o Incorruptível, o Arcanjo do Terror, e, bem próximo dali,
no número 330, o local onde funcionou o Clube dos Jacobinos.
Uma visita a locais como esse,
inevitavelmente, me levou novamente à Place
de la Concorde, antiga Praça da Revolução, local onde foram guilhotinadas
pessoas notórias da França naqueles anos de terror. Luiz XVI, Maria Antonieta,
Danton, Saint-Just, Robespierre... Mas lá, nenhuma referência ao palco onde
rolaram muitas cabeças daqueles que de modo direto ou indireto mudaram a face
do mundo com a revolução de 1.789. Nenhuma placa, nenhum escrito, nenhuma
explicação, nada. Em seu lugar, um obelisco.
Soube que a decisão de “apagar” da
história qualquer menção ou referência aos fatos ocorridos no local onde teria
se dado o corte das cabeças, seria por razões que a França julga indignas ou
impróprias à lembrança do mundo de tamanho espetáculo que envergonha os povos
civilizados. Não sei até onde isso é verdade ou é justificável, mas a verdade é
que no local onde a guilhotina degolou muitos revolucionários e
contrarrevolucionários, não existe nenhuma referência a esse fato.
Já em Berlim, onde os fatos que
ajudaram a mudar a face do mundo ocorreram mais próximos de nossos dias, como a
divisão da cidade pelo muro e os campos de concentração, a atitude foi
diferente. Em Berlim, todo turista é instado a visitar um campo de
concentração. A justificativa para tanto é de que os homens devem ver os locais
onde foi materializado o holocausto pelos nazistas e, vendo aquilo que
representou aquelas atrocidades, não esqueçam e tenham em mente tamanhos
horrores cometidos pelo homem e se envergonhem, não deixando que a história se
repita.
Duas moedas de uma mesma face. Mas,
vejam que paradoxo: na França, santuário da igualdade, fraternidade e,
liberdade, não é dado aos homens conhecer as entranhas e os detalhes do local
onde a Praça da Revolução pôs abaixo cabeças e cabeças pela senda da
guilhotina; na Alemanha, onde o regime nazista suprimiu todas as liberdades
individuais e concebeu um projeto eugenístico-racial para dominar o mundo,
mostrar as engrenagens dessa barbárie funcionaria como um antídoto para que
tais loucuras não voltem a ocorrer. Mas,
na Alemanha – na contramão sesse exemplo - existe o outro lado da moeda, pois a
ninguém é dado o direito de negar a existência do holocausto, delimitar sua
extensão ou assumir qualquer postura crítica que isente, limite ou exima Hitler
de seus atos. Qualquer manifestação que indique simpatia, defesa ou apologia à
figura de Adolf Hitler é terminantemente proibida. É crime.
O que nos é dado saber? E de se
indagar: o que é verdade? Esta última pergunta continua sem resposta desde que
foi feita no Pretório por Poncio Pilatos a Jesus Cristo, adquirindo contornos
filosóficos e materiais na história da humanidade, muitas vezes com muitas
faces de muitas moedas. A verdade é que a verdade não só é mutável como adquire
faces e feições que se ajustam aos interesses e conveniências dos povos, dos
tempos e, sobretudo, dos governos.
Damnatio
memoriae é uma expressão latina que literalmente significa danação da
memória e, num português mais compreensível, quer dizer apagar da memória das
pessoas qualquer lembrança a respeito de um fato ou de uma pessoa. Era um
instituto de que os antigos romanos se valiam e, segundo Umberto Eco, “Votada
pelo Senado, a damnatio memoriae consistia
em condenar alguém, post mortem, ao
silêncio, ao esquecimento. Tratava-se de eliminar seu nome dos registros
públicos, ou então banir as estátuas que o representavam, ou ainda declarar
nefasto o dia de seu nascimento”.
Pois é. Nada mais atual. A damnatio memoriae em tempos recentes foi
usada pelos nazistas, por Stalin, pela Coreia do Norte e por muitos governos
ditos democráticos do Ocidente, mesmo em nossos tempos. Nunca saberemos se o
que é verdade hoje será verdade amanhã ou terá sido ontem. É aquilo que George
Orwell em 1984 denuncia: só existe o
presente, pois o passado pode ser permanentemente alterado para fazê-lo
presente.
Fico
me perguntando como é possível crer no que lemos e no que vemos, pois já foi
dito que a história, sempre, é escrita pelos vencedores e os vencedores sempre
se alternam ou mudam de lado.
No
Brasil de hoje, também, não é diferente. O atual governo está reescrevendo a
nossa história, passando para as atuais gerações a ideia de que o país foi
descoberto por eles e que tudo de bom que há por aqui é fruto da sua ação
onipresente nas nossas vidas. Só falta eles dizerem aquilo que disse Leibinitz,
que vivemos (no Brasil) no melhor dos mundos possíveis de se viver.
Escamotear
a verdade; fazê-la sempre o molde de crenças impostas. Esse será sempre o
instrumento de governos de todos os matizes em todos os tempos.