“Pois é, meu caro, você é tão
canalha quanto eu” (Frase
de Hendrik Höfgen, em Mefisto).
“Se algum dia viveres num
país em que um só partido governa e esse partido, vertical e dogmático, finda
num cume onde se instala um único homem, um único Führer, coloca na sala de tua
casa um retrato desse Führer, grande e ineludível” (Frase de Dieter Müller, em A sombra de Heidegger).
Duas obras de escritores distantes
temporal e geograficamente denunciam com uma crueza implacável, a que ponto os
homens, para alcançar o poder ou estar bem com ele, se prestam, por
oportunismo, ao servilismo intelectual, emprestando, vendendo ou alugando suas
ideias e inteligências. A primeira delas, uma obra-prima, Mefisto, do alemão Klaus Mann, filho do prêmio Nobel de literatura,
Thomas Mann; a outra, A sombra de
Heidegger, do argentino José Pablo Feinmann. Mefisto foi escrito na década de 30 quando Klaus Mann exilou-se da
Alemanha por não aceitar a dominação nacional-socialista que se impôs com
Hitler; A sombra de Heidegger foi
escrita no começo deste século. Ambas as obras tratam da relação – e adesão -
dos intelectuais com o poder, em especial com a Alemanha nazista, mas que
remete essa realidade a qualquer época, regime ou governo.
Comecemos pela segunda, A sombra de Heidegger. Martin Heidegger
foi um filósofo e intelectual que antecedeu, viveu e sucedeu o Terceiro Reich.
Na obra de Feinmann – onde se misturam personagens fictícios e reais, há uma
crítica acerba a Heidegger por ter ele aderido com suas ideias ao regime de
Hitler. Mais do que isso, por ter aderido e mesmo sabendo das atrocidades dos
nazistas posteriormente, nunca ter feito um juízo de retratação ou uma
declaração de erro ou arrependimento. A obra narra a trajetória de Heidegger
com os nazistas através do diálogo epistolar de um de seus discípulos com seu
filho. Dieter Müller conta ao filho numa carta antes de matar-se como foi
possível um homem do talento e grandeza intelectuais de Heidegger ter se
prestado a conduzir toda uma geração de homens cultos à tragédia
nacional-socialista que se abateria sobre a Alemanha, inclusive ele, seu aluno,
adepto e admirador.
Feinmann usa a missiva que Dieter Müller
faz ao filho Martin – nome dado em homenagem ao próprio Heidegger – a crítica
na qual aponta até onde pode chegar a ambição humana e suas relações promíscuas
com o poder. Escandaliza-se como pôde ele, Heidegger, ter contribuído e se
omitido com as atrocidades perpetradas pelos nazistas, com o apoio voluntário
ou involuntário de toda a sociedade alemã que se não batia palmas para os
horrores cometidos por Hitler e seus facínoras, fez-se indiferente ou anuiu de
modo tácito a essas atrocidades. E aí é que A
sombra de Heidegger mete o dedo na ferida sobre a responsabilidade dos
intelectuais e os homens cultos com certos regimes e governos que desprezam
aquilo que há de mais sagrado para eles: a liberdade de expressão e pensamento,
a preservação de valores éticos e morais.
Na carta que o pupilo de Heidegger
dirige ao filho, coberto pela vergonha e a infâmia de ter se prestado a seguir
pela senda de seu “Mestre” Heidegger, há toda uma denúncia de como certos
intelectuais não só mancham e conspurcam seus princípios, como ainda conduzem
toda uma legião de seguidores para certas tragédias como aquela que foi
protagonizada pelo Terceiro Reich. E pode ser mais assustador ainda na lógica
nietzscheniana defendida por Heidegger, quando em nome da grandeza ariana dos
nazistas, ele indaga e afirma pela obra de Feinmann: “O que é o bem? Tudo que leva no homem o sentimento de poder, a vontade
de poder, a potência em si”; “Que os
fracos e os fracassados pereçam! Eis aí o primeiro princípio de nosso amor aos
homens. E que sejam ajudados a morrer”.
Feinmann não termina a crítica a Heidegger pela
carta de Dieter Müller ao filho; conclui com a visita do filho a Heidegger,
anos depois na Alemanha, com aquele cobrando deste o porquê de sua conduta
condenável e imoral para com toda uma geração de alemães, quando impassível ele
assistiu de modo indiferente a perseguição e matança de judeus e minorias
indesejáveis da cartilha de Alfred Rosemberg, Goebells, Himmler, Goering, todos
eles arquitetos do Terceiro Reich. Martin Heidegger, como se sabe, morreu em
1.976 e conseguiu, ainda que sob certos questionamentos, levar para o túmulo a
aura de luminar da filosofia. No diálogo travado entre o Martin, filho de
Dieter Muller, e o Martin filósofo, o Heidegger, entretanto, Feinmann o põe a
nu quando aquele questiona este afirmando que “a filosofia, o pensamento, é às vezes tão insuportável que mata”.
E, sugerindo pelo romance que Heidegger se
suicidasse por provocação do filho de seu discípulo, tal como este fizera para
se redimir das vergonhas cometidas em nome da razão, e diante de sua recusa,
Feinmann fulmina a reputação do reitor de Freiburg ao acusá-lo com a citação de
outro expoente da filosofia alemã, Jürgen Habermas: “o que irrita é a repressão da própria culpa”.
Já Mefisto,
também, trata-se de uma crítica velada de Klaus Mann aos intelectuais que
vendem sua alma para alcançar a glória – numa referência e similitude da obra
de Goethe - mas um romance inspirado em fatos reais. Os fatos se passam na
Alemanha hitlerista dos anos 30 e tem como personagem central o ator Hendrik
Höfgen que, em verdade trata-se de seu ex cunhado Gustaf Gründgens, “ator oficial da camarilha nazista e amigo
de Klaus Mann até a partida deste para o exílio, em 1.933”, segundo o prefácio
de José Erlon Paschoal à obra editada pela editora Estação Liberdade.
Mefisto é uma obra sublime, pois
retrata com uma realidade impressionante como os homens vendem suas almas para
alcançar a fama e o poder (embora no Brasil alguns de nossos homens públicos
apenas a aluguem!). E em Höfgen, como ator, esse servilismo e oportunismo aos
olhos de Klaus Mann parecem acentuados, quando ele afirma em certo trecho do
romance que seu ex cunhado “mente sempre
e não mente nunca. Sua falsidade é a sua autenticidade... Soa complicado, mas é
bastante simples. Ele acredita em tudo e
não acredita em nada. É um ator” (a definição não se encaixa perfeitamente
na nossa classe política brasileira?).
Assim, como
acontece em todas as revoluções e movimentos revolucionários, aqueles que não
creem na sua ocorrência são os primeiros a aderi-los quando eles acontecem.
Hendrik Höfgen, como dito, existiu na pessoa do cunhado de Mann e antes que os
nazistas chegassem ao poder em 1.933, eram por ele objeto de troça e deboche.
Höfgen, o ator comprometido com um Teatro Revolucionário e a causa do
proletariado, no entanto, muda radicalmente quando Hitler chega ao poder e
passa a ser um dos ícones do novo teatro nazista (qualquer semelhança com o
Brasil de hoje terá sido mera coincidência?). A adesão do cunhado ao nazismo e
o inconformismo ao ambiente hipócrita e oportunista em relação aos novos donos do poder na Alemanha dos anos 30, leva Klaus
Mann a deixar o país.
Klaus Mann ao exilar-se da Alemanha e escrever
sua obra em 1.936, serviu no exército norte-americano, lutando na Itália e
norte da África. Com o fim do regime nazista, sua obra que se viu proibida de
publicação na Alemanha nesse período, não pôde, todavia, ser publicada na
Alemanha democratizada, chegando alguns historiadores a defender a tese de que
ele teria se suicidado em 1.949 em razão desse fato. Recusada inicialmente por
editoras de publicar sua obra – mesmo com o fim do nazismo - e depois por decisão
da justiça alemã ocidental, no entanto, pela repercussão de suas denúncias
passou a ser publicada em vários países.
Logo, o que choca em Mefisto não é tão somente a denúncia da submissão e ignomínia dos
intelectuais aos novos mandatários do poder (que antes eles criticavam), mas, o
fato de como foi possível a obra ter sido recusada à publicação mesmo com o fim
do nazismo por editoras alemãs e posteriormente pela justiça daquele país, numa
negação a toda uma tradição de um povo que cultuava a liberdade de expressão e
pensamento. A batalha judicial que negou a Klaus Mann o direito de publicar a
sua obra em seu próprio país se arrastou por vários anos, só vindo a ser
liberada nos anos 80 na Alemanha (A obra foi publicada em 1.956 na Alemanha,
mas foi suspensa pela justiça alemã por intervenção do filho de Gustaf
Grüdgens).
É claro que essa recusa não obteve uma
quase-unanimidade do povo alemão como ocorrera com o regime nazista, não só no plano jurídico, como no
plano literário. Um jurista de então, Fritz Bauer, ao comentar a negativa da
justiça alemã em autorizar a publicação de Mefisto
– por ação da família de Grüdgens que impedia nos Tribunais a publicação da
obra - disse em 1.966: “A liberdade de
imprensa, no caso de direito da pessoa não pode ser limitada pela exigência de
um homem em ver fixada uma determinada imagem sua. Cada um de nós, portanto,
oscila nessa história”, pois “não
temos o direito à própria imagem quando se trata de uma pessoa contemporânea;
todos os contemporâneos, seja hoje ou em épocas passadas, têm de aceitar ser
considerados e avaliados com os olhos subjetivos”.
Como acontece com seu homônimo de Goethe,
Hendrik Höfgen se enrodilha nas brumas do poder, quando Mann afirma em Mefisto que ele perdera toda a vergonha
e pudor, pois “o sucesso, esta sublime e
irrefutável justificativa de todas as infâmias” é o desejo de todo homem.
Em Mefisto, Klaus Mann mostra como em
nome da ambição desmedida pela fama e poder certos intelectuais renegam seus
princípios, negam seus amigos, aderem seus inimigos e pactuam em nome desse
compromisso sua alma com o Diabo, quando Hendrik Höfgen ouve de um ministro do Terceiro
Reich, com o cinismo que lhe é próprio, que: “Não há dentro de todo alemão algo de Mefistófeles, algo de gozador e
de malvado? Se não tivéssemos nada além de uma alma faustiana... o que seria de
nós?”.
Como se vê, não somente os ignaros e a plebe rude
são conduzidos pelo cajado do poder, a intelligentsia
o faz, muitas vezes, como um cordeiro obediente e com as mesmas convicções.