domingo, 24 de fevereiro de 2013

AS INTERNAÇÕES INVOLUNTÁRIAS DA CRACOLÂNDIA, LARANJA MECÂNICA, PELÁGIO E SANTO AGOSTINHO. CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRE-ARBÍTRIO.


“O Deus transcendente, no imaginário católico, deixou de ser a potência ordenadora do caos universal de que falam os primeiros católicos do Gênesis, para adequar-se à medida do homem, fonte de verdade, bondade e justiça” (Eugenio Scalfari)



            Ultimamente temos assistido pela imprensa notícias dando conta de iniciativa da prefeitura do Rio de Janeiro para internar involuntária e compulsoriamente viciados em crack naquela cidade. À medida que num primeiro momento a ação estatal possa levar à aprovação das pessoas que querem o bem de seus semelhantes, ao mesmo tempo essa aprovação merece maior reflexão. Quem em sã consciência pode concordar com espetáculo tão degradante quanto o de se ver seres humanos consumindo drogas a céu aberto, sem qualquer perspectiva de vida ou futuro? Essa é a armadilha para um juízo mais apressado.

            A medida tomada pelo poder público nesse caso tem mais o caráter estético-profilático-midiático - para não dizer demagógico - do que propriamente o resgate da dignidade daquelas pessoas. O número de internações de viciados, 14, salvo engano, se não se afigura ridículo, evidencia a ineficácia da medida e a violência do Estado em dar solução a problemas de modo pontual. Em outras palavras, o poder público não quer resgatar pessoas, gente, seres humanos, mesmo porque ele não diz o que será feito com essas pessoas depois da internação; quer, sim, limpar a imagem estética de uma cidade que é cartão postal do mundo e que não pode assistir a espetáculo de degradação moral que avilta uma mente civilizada. Já se disse, ainda que de modo equivocado, as imagens chocam e falam por si.

            Dito isto, vem a indagação: até que ponto é dado ao Estado o direito de interferir na vida das pessoas a título de protegê-las, impedindo que cometam aquilo que julga ser um mal ou que ajam em desconformidade com os padrões de conduta impostos? Existe uma fronteira ética e moral, intransponível, entre o direito de o Estado punir pela ação errada do homem e a sua punição antecipada pelo impedimento de sua conduta. Essa questão não envolve somente um aspecto de ordem jurídico-médico-legal, mas e, sobretudo, de ordem ética e moral, pois interfere diretamente no livre arbítrio do ser humano. Esse tema já foi – e tem sido - objeto de discussão filosófico-religiosa entre dois personagens da Igreja Católica, Pelágio e Santo Agostinho, com reflexos no pensamento ocidental até os dias de hoje.  Foi trazido à luz de nossos tempos na imortal obra de Anthony Burgess no seu romance Laranja Mecânica e levado ao cinema pelas mãos de Stanley Kubrick.

            Para quem não leu o livro ou viu o filme Laranja Mecânica, eis aqui uma síntese do enredo desenvolvido pelo escritor inglês na sua obra e que guarda uma correlação com a internação involuntária dos viciados da Cracolândia carioca. Numa Londres situada em um tempo em que as relações humanas vão se tornando mais e mais impessoais (a escolha da cidade é meramente casuística, pois retrata a realidade da vida moderna nas grandes metrópoles ao redor do mundo) e o desprezo pelos valores éticos e morais acentuado, Burgess levanta um questionamento se o Estado tem direito de intervir nas ações humanas para impedir que o homem cometa maldades ou aquilo que é considerado mal. O personagem principal da obra é Alex, adolescente que vive na periferia de Londres (um punk londrino ou o nosso punk da periferia da música de Gilberto Gil), filho de pais operários pobres, e que durante o dia leva uma vida ociosa e a noite age com sua gangue a cometer toda sorte de crimes e violência. Alex, portanto, é o retrato da juventude excluída das sociedades modernas que Burgess previu – e parece ter acertado boa parte de sua premonição –: uma sociedade muita tecnológica, muito consumista, muito materialista, muito desumana e desprovida de valores éticos e morais.

            Preocupados com esse fenômeno socioeconômico, os cientistas ingleses desenvolvem um invento que tem por finalidade reprimir a conduta humana quando impulsionada a cometer crimes ou uma atitude que o Estado considere aética ou imoral. O Estado desenvolve e lança mão da “Técnica Ludovico”, uma referência à música de Ludwig Beethoven que será usada nos experimentos em Alex. Alex, então, é preso e submetido como cobaia a uma experiência do Estado no seu projeto de redimir a humanidade de seus erros, crimes e pecados. E a lógica do Estado para seu projeto de redenção da humanidade está estampada nas palavras do primeiro-ministro do governo que está levando adiante a “Técnica Ludovico”: “O governo não pode se preocupar com teorias penológicas datadas. Empilhe os criminosos juntos e veja o que acontece: você obtém criminalidade concentrada, crime no meio do castigo. Daqui a pouco vamos precisar de todo o espaço penitenciário que temos para agressores políticos”.

            O resultado das experiências científicas feitas em Alex é, como diz Burgess no seu romance, retirar do indivíduo qualquer direito enquanto homem a uma escolha moral. Toda vez que ele quiser agir contra os ditames do Estado, Alex será contido por sensações de náuseas e mal-estar físico. E, na advertência contra essa violência, a resposta do Estado é eminentemente utilitarista: “Não estamos preocupados com o motivo, com uma ética superior. Estamos preocupados apenas em reduzir o crime”.

            Burgess ainda que fosse um agnóstico, estabelece uma negação a essa lógica na figura do capelão do presídio onde se encontra Alex, quando aquele diz: “O que Deus quer? Será que Deus quer insensibilidade ou a escolha da bondade? Será que um homem que escolhe o mal é talvez melhor do que o homem que teve o bem imposto a si?”. Vitor Hugo faz o mesmo em Os Miseráveis, dando a Jean Valjean a proteção de um padre numa França pouco sensível aos postulados da Igreja.  Essas duas posições, assim, antagônicas, é que vão estabelecer o enredo e o epílogo da obra de Burgess, transferindo para o leitor a opção por uma delas, mas ficando claramente explícita a opção do autor de Laranja Mecânica pela do capelão do presídio.

            Ao defender seu ponto de vista de que o Estado não pode interferir de modo artificial na vida das pessoas a fim de corrigi-las, Burgess denuncia nessa atitude um comportamento totalitário, bem ao sabor de regimes e governos que querem tutelar seres humanos ao alvedrio de suas conveniências e interesses. Vê-se em sua posição uma questão transcendental, de ordem moral e ética, que se sobrepõe aos simulacros estatais na busca de conceber uma sociedade eugênica do ponto de vista comportamental. O ponto central, portanto, da sua obra é o livre-arbítrio que envolve não somente o aspecto de ordem moral, mas também de ordem religiosa. Numa entrevista dada a propósito de sua obra nos anos 1970, Anthony Burgess reafirmou sua posição, numa referência ao escritor russo Eugene Zamyatin, dissidente do stalinismo, dizendo que ”Adão não desejava ser feliz: ele queria ser ‘livre’, desejava o livre-arbítrio, isto é o direito de poder optar entre duas linhas de conduta, entre duas maneiras de agir sobre as quais soubesse fazer um julgamento moral”.

            Esse tem sido o grande dilema da humanidade: até quando o homem pode agir à luz da sua vontade? Aí entra o grande debate que se deu no âmbito da Igreja Católica entre Pelágio e Santo Agostinho e tem reflexos éticos, morais e filosóficos até os dias de hoje. Pelágio, defensor do livre-arbítrio, sustentava que o homem nascia livre de toda e qualquer amarra, sendo liberto para fazer as suas opções nas ações que iria tomar, um contraponto, portanto, na posição tomada pelo bispo de Hipona, Santo Agostinho, que defendia que o homem nascia com o pecado original, devendo assim rezar e pedir a Deus por sua salvação eterna.

            A posição de Santo Agostinho, oficializada pela Igreja, num primeiro momento é mais confortadora à alma humana, pois parte da premissa que tendo o homem nascido com o pecado original não seria completamente responsável por seus atos. A sutileza agostiniana na defesa de sua tese, no entanto, não é que o homem não seja responsável por seus atos, mas apenas que não é totalmente por eles responsável. É nessa parte da responsabilidade do homem que Deus agiria oportunizando-lhe o arrependimento por seus atos errados e lhe concederia o seu perdão. Em outras palavras, ao homem não é dado pelos seus próprios atos abster-se do pecado, pois somente com a graça divina ele pode tornar-se virtuoso. Essa posição, como dito, foi sufragada pela Igreja, pois esta entende que o homem é um ser frágil neste mundo de tormentas e tentações e, por isso, mesmo com a liberdade relativa de agir que lhe foi conferida, quando ele errar, tem contar com a intervenção divina na sua proteção.

            Depois de uma longa batalha filosófico-religiosa entre Santo Agostinho e Pelágio, prevaleceu a posição do primeiro na França, no Concílio de Orange em 529 da nossa era. E embora Santo Agostinho tenha imposto ao seu rival uma derrota de sua tese, a verdade é que o pensamento de Pelágio perdurou em boa parte do pensamento filosófico e religioso do ocidente, alcançando se não sua maior expressão na obra de Anthony Burgess, ao menos uma expressividade que o torna passível de discussões e interpretações.

            Concluindo: em Laranja Mecânica Alex depois do tratamento pela “Técnica Ludovico” tenta o suicídio, suicídio esse testemunhado pelos que leram ou viram o filme. As tragédias da Cracolândia carioca pós-internação involuntária não terão testemunhas, pois “a dor da gente não sai no jornal”, como diz uma música de Chico Buarque. Ao homem, pergunta-se, deve ser dada liberdade para agir e responder por suas consequências ou optar por uma liberdade tutelada?