sábado, 31 de março de 2012

O CALVÁRIO DO SENADOR DEMÓSTENES. O QUE O GOVERNO SABIA?



“Se a minha vida é apologia contra minha doutrina; se as minhas palavras já vão refutadas nas minhas obras; se uma cousa é o semeador e outra o que semeia, como se há de fazer fruto?” (Padre Antonio Vieira)

“A linguagem política – e com variações isso vale para todos os partidos políticos, dos conservadores aos anarquistas – é moldada para fazer mentiras soarem como verdades, dar respeitabilidade ao assassinato e aparência de solidez a puro vento” (George Orwell)

Calamandrei, salvo engano, disse que devemos desconfiar dos homens que arrotam honestidade. O caso do senador Demóstenes que se apresentava como paladino da moralidade pública e que se vê enrodilhado em denúncias de envolvimento em negócios escusos com o bicheiro Carlinhos Cachoeira – a quem o New York Times em seu primeiro escândalo há seis anos com Waldomiro Diniz, o chamou literalmente de “Charles Watterfall” – pode ser uma confirmação do que disse o jurista italiano. A situação do senador Demóstenes é crítica menos por eventualmente ter cometido um crime e mais pela revelação ao seu distinto público da incoerência entre o que ele diz da tribuna e as ações de sua vida privada. Os fatos que são trazidos ao conhecimento público revelam ainda como o senador pôde ser tão ingênuo e incauto a ponto de não preservar uma imagem de moralista construída ao longo destes tempos de denuncismo em que as vítimas do quilate do senador são um prato apetitoso.
Não fosse o senador Demóstenes aquilo que ele procurava passar para a opinião pública, sempre com se tivesse uma férula à mão criticando com um ar professoral os malfeitos (palavra tão ao gosto dos bajuladores oficiais) do governo, o caso seria resolvido com a solução recorrente a que os seus colegas de Senado se valem – o corporativismo. Mas a situação do senador é diferente. Está exposta sua reputação e nessas circunstâncias uma presa tão suculenta não escaparia da sanha daqueles que vivem de escândalos e daqueles a quem se incomoda.
Eça de Queiroz, quando diplomata na França, conta caso semelhante do fim de uma reputação no seu Ecos de Paris: o caso Buloz. Buloz era o diretor da respeitada “Revista dos Dois Mundos”. Conservador, austero, defensor da família e dos bons costumes da sociedade francesa, Buloz era o retrato do monopólio da decência e da honestidade. Mas Buloz, como todo mortal, tinha seu calcanhar de Aquiles e seu lado hipócrita e se viu envolvido com uma amante de origens pouco recomendáveis para um ilustre cidadão parisiense. Envolvido com a amante ao mesmo tempo em que defendia pela revista que dirigia a moralidade da família francesa, um dia a casa caiu, como se diz no jargão popular. Descoberta sua vida secreta, o impoluto Buloz caiu em desgraça, vítima dos “tubarões de Paris”, a quem Balzac se referia àquelas pessoas que se alimentavam de escândalos e engolem suas vítimas, seja uma garrafa jogada ao mar seja uma pescada suculenta.
O senador Demóstenes foi engolido não como uma garrafa, mas como uma pescada suculenta pelos tubarões de Brasília e tal como Buloz não só não soube preservar sua vida privada – o corredor da vida pública – como mostrou como no Brasil a incoerência é o rótulo mais visível da nossa classe política.
            Mas, o que o governo sabia sobre esses fatos? Essa é uma pergunta que a imprensa não fez, não enxergou ou não quis ver o alcance e a extensão desse episódio, preferindo tratá-lo pelas suas fímbrias. Há dois anos, todo esse material obtido pela Polícia Federal já teria sido encaminhado à Procuradoria Geral da República. A Polícia Federal, então, por ter feito as escutas no curso de um inquérito formal, sabia há pelo menos dois anos do envolvimento do senador Demóstenes com “Charles Watterfall”. Se a PF encaminhou essas provas para a Procuradoria Geral da República, será crível crer que não deu conhecimento ao Ministério da Justiça e este à Presidência da República? Por que deixaram congelado o senador goiano durante todo esse tempo? Por que o inquérito não passou a tramitar no Supremo Tribunal Federal desde então? Por que a PGR manteve silêncio e omissão durante todo esse tempo? Por que conversas gravadas por interceptações telefônicas que deveriam – ou devem – estar protegidas pelo sigilo, são levadas ao conhecimento público?
            O que chama atenção e assusta nesse episódio é que, parece, o governo, depois de manietar nossas instituições, possui uma caixa de maldades e a abre quando a conveniência lhe recomenda. Quando se assiste um governo fazer tantos “malfeitos” e vê-se uma oposição tíbia e acanhada, é sinal que muita gente tem rabo preso e sabe que a sua intimidade não é mais uma coisa que lhe diz respeito somente. Essa intimidade é dividida com o governo que possui os instrumentos legais e extralegais para nela se imiscuir. Portanto, vou especular, porque não tenho provas. Depois que o Congresso vetou a indicação da presidente Dilma Roussef do nome para ocupar a ANTT, o governo pôs em marcha o processo de desmoralização do senador Demóstenes (se foi escolhido aleatoriamente ou não, também não sei). Acionou o Ministério da Justiça, que por sua vez determinou a Polícia Federal que, por sua vez, pôs em marcha o inquérito de Carlinhos Cachoeira e, por fim, divulgou as conversas dele comprometendo o senador Demóstenes. Acerta um pombo e manda um recado aos outros.
            Assim, o processo de dissecação política do senador Demóstenes promovida pelo governo se dá de modo lento e gradual, em banho maria, na medida em que são divulgadas pela imprensa as suas conversas em doses homeopáticas.
            Imaginação? Não creio, porquanto não tem explicação uma investigação policial em curso há mais de dois anos só agora ter chegado ao conhecimento público e em circunstâncias no mínimo suspeitas. E se isso é correto, o governo e suas instituições são tão imorais quanto a conduta que se atribui ao senador Demóstenes.

           

domingo, 25 de março de 2012

CHICO ANYSIO – O ARTISTA DO RISO




“Vamos rir, pois. O riso é uma filosofia. Muitas vezes o riso é uma salvação” (Eça de Queiroz).


Chico Anysio, pela repercussão que está sendo dada à sua morte, revela o quanto foi um gênio, sobretudo, na arte de fazer as pessoas rirem quando muitas vezes a circunstância levava ao choro ou à seriedade. Seu pecado foi ter-se convertido de torcedor do América para o do Vasco. O primeiro, - a conversão - um pecado perdoável, o segundo, - a adesão vascaína - um pecado mortal. Mas, afora o gracejo dessas colocações, a morte do Chico Anysio é daquelas que devem ser lamentadas por todos que gostavam, não só de seu humor, mas de sua inteligência. E num país em que se fabricam choros e lamentações para certas nulidades que morrem, Chico Anysio deve ser realmente pranteado.
Fazer rir não é fácil. É para aqueles que realmente têm esse dom, esse talento. E os atores que lidam com a arte de interpretar sabem que é mais fácil fazer chorar do que rir. E Chico Anysio, além de ter exercido um leque de versatilidades como escritor, roteirista, comentarista esportivo, ator, foi no humor, no entanto, que se imortalizou. Desde menino, ainda no tempo da televisão preto e branco, Chico já me fazia rir e às várias gerações que me antecederam e sucederam. Era eclético na arte de fazer rir. Dava vida tanto a uma piada de salão como a uma piada de cunho político. E se manteve assim durante toda sua existência. Sua arte e seu talento consistiam em explorar do cotidiano do povo brasileiro as piadas mais engraçadas; aquela piada que tanto o mais erudito dos homens como o mais simplório não se continham em gargalhadas quando contadas ou interpretadas por Chico Anysio.
Tavares, o emérito bebum; Justo Veríssimo, o protótipo do político brasileiro; Coalhada, a encarnação do lado cômico e desorganizado do futebol brasileiro; o professor Raimundo e seus alunos, o retrato da educação brasileira; Pantaleão, o lado cínico da mendacidade humana; Salomé, a gaúcha que recriminava a ditadura militar, e tantos outros. Em muitos desses personagens havia não só o humor que deles exalava, mas também e, sobretudo, retratava de modo fino, irônico e sutil o lado da crítica ferina e mordaz do nosso dia-a-dia que só o riso consegue demolir.
Chico Anysio teve a capacidade através de seu talento de retratar com humor muitas situações e facetas do povo brasileiro, sem reduzi-las à vulgaridade do senso comum. Tive a felicidade de assistir Chico Anysio ao vivo em três oportunidades. Uma no Rio, outra em Boa Vista e a última em Brasília, num espaço de tempo que distou pelo menos 15 anos da primeira para a última apresentação. Nessas três vezes ele sempre se apresentou diferente e renovador, criando e recriando, comprovando sua genialidade, pois é muito difícil atravessar mais de meio século nessa atividade e não perder a criatividade numa arte que é para poucos – fazer rir.
Definitivamente Chico Anysio vai deixar saudades. E digo isso com sinceridade e sem demagogias baratas, elogios estéreis e aqueles lugares comuns quando se tributa homenagens a certas pessoas pelo simples fato de terem morrido. Sim, Chico Anysio será eterno e poderia ter vivido mais tempo para adiar nossa orfandade. Sim, Chico Anysio o artista do riso sabia muito bem que seu humor tinha mais poder que uma baioneta e, de certa forma, embora a história e os historiadores até agora não lhe confiram essa honraria, ajudou a sepultar o regime militar na figura, dentre outros de seus personagens, de Salomé, que não era outra coisa que a voz do povo brasileiro clamando pela volta da normalidade democrática (se é que essa normalidade democrática alcançou a sua maturidade no Brasil). Seu humor foi decididamente um instrumento político em favor do povo brasileiro, no sentido mais higiênico que a palavra possa comportar nesses dias de putrefação moral.
Por isso mesmo, nós brasileiros (ou pelo menos eu) lhe dedicamos como réquiem, as palavras de Eça de Queiroz, tão afetas ao Brasil de hoje: “a gargalhada não é nem um raciocínio nem um sentimento; não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma. Um Governo decreta? gargalhada. Reprime? gargalhada. Cai? gargalhada. E sempre esta política, liberal ou opressiva, terá em redor dela, sobre ela, envolvendo-a como a palpitação de asas de uma ave monstruosa, sempre, perpetuamente, vibrante, e cruel – a gargalhada!”.

Grande Chico Anysio, requiescat in pace.