“Os amantes e os loucos têm cérebros tão fervilhantes, fantasias tão imaginativas, que acabam por conceber mais do que a fria razão pode compreender. O lunático, o amante e o poeta são compostos tão-somente de imaginação. Um enxerga tantos demônios que estes não cabem em todo vasto inferno; assim é o louco” (Wiliam Shakespeare, diálogo de Teseu na cena I, do V ato de Sonho de uma noite de verão).
Há poucos dias em São Paulo, um empresário e artista plástico de 33 anos, de uma família de classe média e com uma referência que o colocava - dentro de critérios convencionais - fora de suspeita de uma conduta anormal, roubou um automóvel, saiu pelas ruas da capital paulista atirando contra várias pessoas, feriu algumas delas e tentou roubar tantas outras. Preso, descobriu-se que ele levava uma vida introspectiva e tinha problemas de relacionamento com a família e os vizinhos. Na delegacia, após surtos de desequilíbrio mental, o artista plástico disse que se sentia ameaçado e temia ser morto, atribuindo seus temores a algozes imaginários.
A imprensa escrita e televisa mostrou tudo isso ao país. Um homem com uma conversa desconexa, um olhar siderado e um rosto que denunciava o comportamento de um desequilibrado mental.
O episódio, felizmente, não teve vítimas fatais; mas poderia ter levado a uma tragédia maior. Num primeiro momento, pelo ineditismo da ação, o delegado responsável pela apuração do caso admitiu que pode tratar-se de um “surto psicótico” de Michel, mas mesmo assim foi pedida e decretada sua prisão. Pois bem. Alguém de bom senso ou inteligência mediana, pode considerar que esse Michel Goldfarb Costa tem um comportamento normal? Por que ele não foi examinado por um médico sequer ao ser detido e preso? Por que se dar a um caso que se afigura escancaradamente um problema de ordem médica, uma condução meramente policial?
Como é que alguém, de boa família, com estabilidade financeira, mas que tem um histórico de introversão e dificuldade de relacionamento, poderia ser normal do ponto de vista médico, roubando e atirando contra pessoas que ela nunca viu na vida em plena via pública da maior cidade da América Latina? Eu não preciso de um diagnóstico médico para afirmar que esse rapaz é um doido varrido. E perigoso.
Mas esse é o problema do Brasil. Sempre procuramos tratar casos tais com sensacionalismo e sob a ótica da visão policialesca. E, depois pronto. Tudo cai no esquecimento. Ao invés de ser mandado para uma prisão, ele deveria ter ido direto para um hospital psiquiátrico para ser examinado. Se os médicos disserem que ele não é louco – coisa que eu duvido muito – deve continuar preso; se disserem que não, deve ser mantido sob tratamento ou em medida de segurança a fim de que não saia por aí pondo em risco a vida das pessoas.
Por que faço essas ponderações? Porque há menos de um ano a escola Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, viveu espetáculo parecido, onde um maluco munido de uma arma matou várias crianças numa sala de aula. Mesmo morto, descobriu-se que Wellington Oliveira, o assassino, apresentava um perfil comportamental semelhante ao do louco de São Paulo. Naquela ocasião, no Rio, além da comoção do país que acompanhou incrédulo a morte de várias crianças na idade escolar, fomos tomados por um sem-fim de demonstrações de demagogia, hipocrisia, falsa revolta e todas aquelas atitudes bem conhecidas de certos oportunistas que gostam de aparecer nas tragédias dos outros.
No caso de São Paulo a reação foi menor, porque não houve vítimas fatais e porque, por certo, as vítimas não eram ou não foram crianças, que sempre são um cardápio melhor para o cinismo público em casos tais e do qual elas são as próprias vítimas. Portanto, o índice de oportunistas, palpiteiros e demagogos no episódio de São Paulo foi diretamente proporcional ao tamanho da tragédia. A imprensa só deu ao fato, como disse Andy Warhol, os seus15 minutos de fama.
Na ocasião do massacre da escola Tasso da Silveira, disse eu em um artigo do meu blog, que as autoridades – os políticos, sobretudo – ao invés de lançarem insultos e invectivas contra o louco-morto do Rio de Janeiro, deveriam descobrir porque uma pessoa aparentemente normal foi capaz de cometer um ato tão tresloucado como o que foi perpetrado por Wellington Oliveira contra crianças indefesas.
Lembro-me naquela ocasião que houve até certas autoridades públicas que ensaiaram um choro pelas crianças mortas. Mas, de lá prá cá ninguém fala mais no assunto e o que é mais grave, nunca se procurou descobrir as causas daquele ato desvairado e muito menos se criar mecanismos de prevenção, embora naquela mesma oportunidade tenha afirmado que quando um homem está disposto a matar alguém sem preservar a sua própria vida, é quase impossível dar proteção e segurança ao seu alvo, mesmo que esse alvo seja o papa ou o presidente dos Estados Unidos.
O padre Vieira disse que a diferença entre o falso e o verdadeiro profeta só se sabe quando a profecia se realiza. Mas, quando da tragédia do Rio de Janeiro, eu me arrisquei – com convicção – em dizer que o episódio não seria um caso isolado no Brasil e que muitos Wellingtons ainda estariam por explodir. Acertei. Michel já explodiu, mas não sou profeta, ainda que a profecia tenha se realizado. Resumo da ópera: Michel Goldfarb Costa não é amante e nem poeta; é louco.